(62) 3920-9900

(62) 3093-3646 - (62) 99335-6488

crosara@crosara.adv.br

Goiânia, GO

Setor Oeste

A abrangência do Tema 1.199 da repercussão geral quanto às modificações na tipicidade dos atos de improbidade administrativa pela Lei nº 14.230/2021

A abrangência do Tema 1.199 da repercussão geral quanto às modificações na tipicidade dos atos de improbidade administrativa pela Lei nº 14.230/2021

21 mar 2023

                        A Lei nº 14.230/21 introduziu diversas alterações na tipicidade dos atos de improbidade administrativa (previstos pela Lei nº 8.429/92). Essas alterações foram, em geral, mais benéficas aos agentes públicos. Por “tipicidade”, entende-se a previsão abstrata na legislação acerca de quais condutas se enquadram como atos de improbidade administrativa. Vejamos explicação da doutrina penalista[1] acerca desse termo:

Tipo penal é a descrição abstrata de uma conduta, tratando-se de uma conceituação puramente funcional, que permite concretizar o princípio da reserva legal (não há crime sem lei anterior que o defina).

A existência dos tipos penais incriminadores (modelos de condutas vedadas pelo direito penal, sob ameaça de pena) tem a função de delimitar o que é penalmente ilícito e o que é penalmente irrelevante; tem, ainda, o objetivo de dar garantia aos destinatários da norma, pois ninguém será punido senão pelo que o legislador considerou delito, bem como tem a finalidade de conferir fundamento à ilicitude penal. Note-se que o tipo não cria a conduta, mas apenas a valora, transformando-a em crime.

                        No presente caso, para ser mais didático e objetivo, adianta-se que a Lei nº 14.230/21 retirou o caráter ímprobo de determinadas condutas, assim como introduziu novos requisitos para caracterização de determinados atos ímprobos. Ou seja, houve a modificação de alguns tipos ímprobos e até mesmo a total abolição/revogação de outros.

                        Vejamos alguns exemplos dessas alterações na tipicidade:

(i) revogação da conduta ímproba culposa, exigindo-se o dolo e a má-fé do agente público, com relação a todos os atos de improbidade administrativa (art. 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92);

(ii) necessidade de demonstração por parte do órgão acusador de efetivo dano ao erário para ficar caracterizado o ato ímprobo do art. 10 da Lei nº 8.429/92;

(iii) expressa revogação dos incisos I e II do art. 11 da Lei nº 8.429/92;

(iv) instituição da taxatividade do rol do art. 11 da Lei nº 8.429/92, passando a ser vedada a condenação genérica, devendo haver necessariamente a indicação de algum inciso específico desse artigo.

                        Com a superveniência da Lei nº 14.230/21, houve diversas discussões acerca da sua aplicação no tempo, se retroagiria para alcançar situações pretéritas, ou se se limitaria às situações vindouras. Após debates doutrinários e jurisprudenciais, o Supremo Tribunal Federal aparentemente pacificou a questão com o julgamento da Tema 1.199 da repercussão geral. Vejamos as teses fixadas pela Suprema Corte:

1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;

4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

                        Pela leitura dessas teses, verifica-se que o STF apenas decidiu acerca da aplicação no tempo da nova lei quanto à abolição/revogação dos atos ímprobos culposos e quanto ao novo regime prescricional. Ou seja, a Suprema Corte não decidiu acerca da aplicação no tempo quanto às demais modificações introduzidas pela Lei nº 14.230/21, dentre elas, as demais alterações na tipicidade dos atos de improbidade administrativa.

                        Sobre o assunto, o Ministro Relator Alexandre de Moraes expressamente consignou que o objeto do Tema 1.199 da repercussão geral se circunscreve a definir a (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/21 somente no tocante à exigência de dolo e ao novo regime prescricional; e que as demais alterações serão debatidas em outras ações. Vejamos:

Dessa forma, o objeto da presente repercussão geral circunscreve-se a definir eventual (ir)retroatividade das novas alterações realizadas na LIA pela Lei 14.230/2021, no tocante à exigência da caraterização do elemento subjetivo do tipo – dolo – para configuração dos atos de improbidade administrativa praticados antes da alteração normativa; bem como, sobre a aplicação dos novos prazos prescricionais e a recém-criada prescrição intercorrente.

Não cabe, neste precedente de repercussão geral, analisar a compatibilidade de todas as inovações com a Constituição de 1988.

O ponto essencial é: aceitando-se a premissa de que tais normas são mais benéficas ao réu, se comparadas com as da Lei 8.429/1992, definir se as regras da Lei 14.230/2021 atinentes ao dolo e à prescrição incidem quanto a fatos e a ações a ela anteriores.

Os demais e importantes assuntos trazidos em memoriais e nas sustentações orais, tais como as alterações do artigo 11, mudanças procedimentais, autonomia de instâncias serão debatidos e decididos em ações próprias, várias delas já ajuizadas perante esse SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

                        Não ficou decidido pelo STF a (ir)retroatividade das outras modificações da tipicidade dos atos ímprobos introduzidas pela Lei nº 14.230/21. Por exemplo, a Suprema Corte não decidiu expressamente acerca da aplicação no tempo das seguintes alterações: i) abolição dos incisos I e II do art. 11; ii) taxatividade do art. 11; iii) exigência de comprovação de efetivo dano ao erário para caracterização do art. 10.

                        No entanto, não é necessário que o STF se debruce e decida especificamente quanto à (ir)retroatividade das demais modificações na tipicidade dos atos de improbidade administrativa. Isso porque basta um exercício de lógica para extrair uma conclusão sobre o assunto, pela mera leitura do decidido no Tema 1.199 da repercussão geral.

                        Pois bem. O elemento subjetivo “culpa” ou “dolo” diz respeito à tipicidade dos atos de improbidade administrativa. O “tipo” corresponde à descrição abstrata de uma conduta, realizada pela lei (no caso, a Lei nº 8.429/92). Assim, só haverá uma “conduta típica” caso praticada com o elemento subjetivo exigido no tipo abstrato.

                        Vejamos explicação de Guilherme Nucci[2]:

Tipo penal é a descrição abstrata de uma conduta, tratando-se de uma conceituação puramente funcional, que permite concretizar o princípio da reserva legal (não há crime sem lei anterior que o defina). […]

Considerando-se o tipo penal como modelo legal abstrato de conduta proibida, que dá forma e utilidade ao princípio da legalidade (não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a comine), fixando as condutas constitutivas dos crimes e contravenções penais, convém esmiuçar o estudo dos seus componentes.

O tipo incriminador forma-se com os seguintes elementos:

1º) objetivos: todos aqueles que não dizem respeito à vontade do agente, embora por ela devam estar envolvidos. […].

2º) subjetivos: todos os elementos relacionados à vontade e à intenção do agente. Denominam-se elementos subjetivos do tipo específicos, uma vez que há tipos que os possuem e outros que deles não necessitam. Determinadas figuras típicas, como o homicídio (“matar alguém”), prescindem de qualquer finalidade especial para se concretizar. Logo, no exemplo citado, pouco importa a razão pela qual A mata B; o tipo penal pode integralizar–se por completo. Entretanto, há tipos penais que demandam, expressamente, finalidades específicas por parte do agente; do contrário, não se realizam. Só se pode falar em prevaricação (art. 319) caso o funcionário público deixe de praticar ou retarde o ato de ofício para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Aí está o elemento subjetivo do tipo específico da prevaricação. Se não estiver presente, pode-se falar de mera falta funcional.

                        Da mesma forma, Juarez Tavares[3]:

Com a crescente influência da teoria finalista, que começou a se fazer sentir na doutrina penal a partir de 1950 e, no Brasil, na década de 1970, o dolo não mais compôs a estrutura da culpabilidade e passou a integrar, como segmento da própria conduta, o tipo de injusto. Com isso, entre seus elementos compreendia o conhecimento atual de todas as circunstâncias objetivas do tipo, incluindo as negativas (presentes em alguns delitos, por exemplo, a expressão “contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito”, estampada no crime de violação de domicílio, art.150, CP; a expressão “sem consentimento”, no crime de introdução ou abandono de animais em propriedade alheia, art. 164, CP) e a vontade incondicionada de realizar o tipo (vontade de realização).

                        Verifica-se que a doutrina penalista nos fornece a explicação de que o elemento subjetivo (dolo e/ou culpa) integra o tipo penal, ou seja, integra a descrição abstrata da conduta típica. Trata-se da aplicação da teoria finalista (adotada pelo sistema brasileiro), a qual retirou o elemento subjetivo da culpabilidade e o transladou para o tipo penal.

                        No caso, a tutela da probidade administrativa integra o direito sancionador lato sensu, assim como o direito penal. O direito sancionador visa à aplicação de uma sanção ao agente que comete uma conduta abstratamente descrita pela lei (“conduta típica”). No direito penal, a sanção por excelência é a pena privativa de liberdade. Já na tutela da probidade administrativa, a sanção pode ser a suspensão de direitos políticos, a multa civil, a perda do cargo/função pública ou mandato eletivo, dentre outras.

                        Como direito sancionador, tanto a seara criminal quanto a da probidade administrativa devem obediência ao princípio da legalidade. Referido princípio prescreve que todas as condutas aptas de sancionamento devem estar expressamente previstas na lei formal – as quais são denominadas “condutas típicas”. Trata-se do axioma nullum crimen nulla poena sine lege (“Não há crime, nem pena, sem prévia lei”).

                        Por esse motivo, tanto os “crimes” quanto os “atos de improbidade administrativa” devem estar previstos em lei formal, descritos na forma de condutas abstratas passíveis de sanção (ou seja, condutas típicas). Desse modo, assim como no direito penal, na tutela da probidade administrativa, também se fala em “tipicidade” ou “fato típico”. Isso porque somente será considerado “ato de improbidade administrativa” caso a conduta praticada pelo agente esteja abstratamente prevista na lei formal.

                        Portanto, como o elemento subjetivo “culpa” integra a tipicidade, conclui-se que todas as modificações na tipicidade dos atos de improbidade administrativa, promovidas pela Lei nº 14.230/21, devem ser aplicadas aos casos em curso, por aplicação lógico-sistemática do entendimento fixado pelo STF no Tema 1.199 da repercussão geral.  

 

Heitor Simon Fonseca Pedroso

 

[1] Nucci, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 506.

[2] Nucci, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 506/508.

[3] Tavares, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2018, p. 250.