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Setor Oeste

Os desequilíbrios imprevisíveis dos negócios e a revisão judicial do instrumento contratual

Os desequilíbrios imprevisíveis dos negócios e a revisão judicial do instrumento contratual

01 fev 2023

Arthur Sadrak Pereira

 

Os negócios não estão sujeitos tão somente à vontade das partes, mas, sim, à toda coletividade, dada a sua função social (art. 421 do Código Civil). Apesar disso, não se perde de vista que o contrato afeta, principalmente, os contratantes e, por isso, que a função social atua “primeiro entre as partes, de maneira a assegurar contratos mais equilibrados e, assim, envolventes de partes substancialmente mais iguais, com o que se garanta uma igual dignidade social aos indivíduos.”[1]

Embora o contrato possua viés social, sem a livre manifestação de vontade das partes – que possuem ampla discricionariedade[2]  para escolher os termos da avença – o instrumento não será formalizado.

Ordinariamente, grande parte dos contratos possuem cláusulas que visam estabelecer soluções para situações que fogem à normalidade, de modo que haja gestão dos riscos a fim de manter a higidez do negócio. Não obstante, há imprevisibilidades que fogem a todos e que, direta ou indiretamente, atingem o equilíbrio contratual.

Preocupado com as extraordinariedades, o Código Civil disciplinou o que a doutrina denomina de “teoria da imprevisão” (art. 317), que pode ser compreendida como cláusula contratual implícita que admite a revisão geral do instrumento negocial, a fim de que haja reequilíbrio dos direitos e deveres consoante às vontades declaradas em sua formação, desde que quando da execução do contrato ocorra evento imprevisível que gere alteração na base econômica objetiva do contrato.[3]

A referida teoria, contudo, não terá aplicação quando na ausência de acontecimento imprevisto ou quando a onerosidade excessiva ser oriunda de álea normal, como nos contratos aleatórios (art. 485 e seguintes do Código Civil). [4]

Ainda no Código Civil, há a denominada “teoria da onerosidade excessiva” (art. 478), que também possibilita a revisão contratual.[5] A onerosidade excessiva revela uma situação em que uma das partes só terá benefícios, ao passo que a outra só terá desvantagens e, além disso, também exige que o contrato seja de execução continuada e o fato superveniente seja extraordinário e imprevisível.

O que diferencia as duas teorias é que na primeira, exige-se que o momento de celebração do contrato e o de sua execução sejam diferentes. Já na segunda, que o contrato seja de execução continuada ou diferida.

O Código de Defesa do Consumidor, pela sua essência de dispor de normas benéficas ao consumidor, em razão de sua vulnerabilidade presumida, estabeleceu a “teoria da base objetiva” (art. 6º, inciso V), que torna a revisão contratual facilitada em relação à teoria da imprevisão ao não se exigir o fato extraordinário imprevisível, mas apenas o desequilíbrio contratual ou a onerosidade excessiva.[6]

A boa-fé, ao mesmo passo que fundamenta as referidas teorias, também deve ser guia para que os próprios contratantes possam revisar os termos estabelecidos. Eventualidades que tornam os interesses contratados desarrazoáveis não devem ser fatores beneficentes a uma ou outra parte. Entretanto, não raro o Poder Judiciário é instado a se manifestar acerca da possibilidade de revisão dos contratos a fim de manter hígida o princípio da justiça no contrato.[7]

Com o início da pandemia de Covid-19, o Judiciário teve a oportunidade de traçar contornos bem definidos quanto à revisão com fundamento nas teorias apresentadas. O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por exemplo, estabeleceu ser inaplicável a teoria da imprevisão, visando a suspensão da exigibilidade das prestações do contrato celebrado, por conta da redução da atividade comercial no período relacionado à crise econômica provocada pela pandemia de Covid-19, quando não demonstrada a queda de rendimentos em razão do distanciamento social.[8]

Já no Superior Tribunal de Justiça, dois julgamentos paradigmáticos devem ser observados para uma exposição completa da temática.

No primeiro, Recurso Especial nº 1.998.206/DF, a Corte definiu que “a situação decorrente da pandemia pela Covid-19 não constitui fato superveniente apto a viabilizar a revisão judicial de contrato de prestação de serviços educacionais com a redução proporcional do valor das mensalidades”. O caso concreto gira em torno de um pedido de redução de mensalidades escolares de duas crianças que, em razão da pandemia, tiveram suas aulas disponibilizadas de maneira exclusivamente remota (online), além de terem sido suprimidas disciplinas da grade curricular regular, diferentemente dos termos constantes do contrato.

Ao enfrentar a matéria, o Superior Tribunal de Justiça definiu sistematicamente que: (i) nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual” (art. 421, parágrafo único do Código Civil); (ii) para aplicação da teoria da imprevisão, além do fato imprevisível, necessário que “decorra situação de vantagem extrema para uma das partes, relacionando-se, portanto, à vedação do enriquecimento ilícito”;  (iii)não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário” (art. 7º da Lei nº 14.010/2020); e (iv)a gênese a ser extraída dos normativos mencionados […] é a manutenção dos contratos, assegurando-se, na medida do possível, a continuidade das relações sem a aplicação dos ônus por eventual inadimplemento”.

Nesse caso, em específico, é importante notar que a Lei nº 14.010/2020 foi o grande motivo para o indeferimento da pretensão até alcançar o STJ. Reforça essa conclusão excerto da decisão ao dispor que “no início da pandemia, inúmeras foram as decisões judicias que […] asseguraram a redução das mensalidades escolares, ainda que de maneira proporcional”.

Ademais, outro ponto que merece atenção diz respeito a análise da assimetria econômica e financeira, que deve ser feita “com base no grau de desequilíbrio e nos ônus a serem suportados pelas partes e na específica circunstância de o evento superveniente não se encontrar na esfera de responsabilidade da atividade econômica do fornecedor”.

No segundo caso paradigmático, Recurso Especial nº 1.984.277/DF, foi estabelecido que “é cabível revisão judicial de contrato de locação não residencial – empresa de coworking – com redução proporcional do valor dos aluguéis em razão de fato superveniente decorrente da pandemia de Covid-19”. No caso, uma empresa celebrou contrato de locação de sala comercial de coworking, mas que, em razão da pandemia e do decreto que restringiu os espaços públicos, houve inviabilização do exercício da atividade comercial, embora a prestação locatícia tenha sido mantida pelo locador. E, então, requereu a revisão do contrato a fim de que fosse reduzido em 50% o valor das mensalidades.

Nas razões de decidir, o STJ dispôs que: (i)é […] a liberdade de contratar a regra, tendo a intervenção judicial cabimento apenas quando imprescindível ao restabelecimento do equilíbrio entre as partes”; (ii)em relação ao requisito da superveniência de fato imprevisível ou extraordinário […] é inquestionável que a pandemia de Covid-19 adequa-se, com perfeição, às exigências referidas”; (iii)não há dúvidas de que a pandemia causada pelo coronavírus, sob tal perspectiva, exsurge como causa possível para aplicação de ambas as teorias” (da base objetiva e da imprevisão); (iv)sobreveio desequilíbrio econômico-financeiro imoderado para a locatária”; e  (v)os riscos não poderiam ser suportados em nenhuma medida pelo locador, no caso concreto, não se compatibiliza com os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato.”  Ao fim do voto, a relatoria do Min. Luis Felipe Salomão consignou que “a situação da pandemia pode ser enquadrada como fortuito externo ao negócio, circunstância que exige a ponderação dos sacrifícios de cada parte na relação contratual.

A análise dos julgados nos leva à conclusão da fiel observância do STJ ao Enunciado nº 17 do Conselho da Justiça Federal, que dispõe que “a interpretação da expressão ‘motivos imprevisíveis’, constante do art. 317 do novo Código Civil, deve abarcar tanto causas de desproporção não previsíveis, como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis.”

Vale dizer, ante essas considerações, que a análise da imprevisibilidade e, por conseguinte da revisão do instrumento contratual, deve se ater além das condições do mercado, considerando também os impactos entre as partes.[9]

 

[1] GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 131; No mesmo sentido: Enunciado 360 do CJF/STJ – O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes.

[2] Desde, é claro, respeitado os limites da estabelecidos no ordenamento jurídico, v.g, os arts. 104 e 166 do Código Civil.

[3] Nesse sentido:  TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 2: Direitos das Obrigações e Responsabilidade Civil. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 179.

[4] Nesse sentido: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol. III. 5ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 70.

[5] Enunciado 176 do CJF/STF: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.

[6] TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 5ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: MÉTODO, 2016. p. 222.

[7] Nesse sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Contratos – Teoria Geral e Contratos em Espécie. 5ª Ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 184; PEREIRA, Caio Mário da Silva. op. cit., p. 66.

[8] TJGO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Apelação Cível 5198677-94.2020.8.09.0087, Rel. Des(a). Aureliano Albuquerque Amorim, 2ª Câmara Cível, julgado em 26/04/2021, DJe  de 26/04/2021.

[9] Nesse sentido:  TARTUCE, Flávio. op. cit. p. 179; e REsp n. 1.993.499/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 2/8/2022, DJe de 9/8/2022.